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ARTIGO: Controle de convencionalidade da reforma trabalhista

por André Araújo Molina


Introdução A dignidade da pessoa humana migrou do discurso filosófico para o jurídico por ocasião das revisões realizadas nos ordenamentos normativos após o final da Segunda Guerra Mundial. oportunidade em que ela foi introduzida, na órbita do direito interno, em praticamente todas as legislações dos Estados democráticos e, no plano internacional, nas diversas declarações e tratados internacionais de proteção dos direitos humanos.


Especificamente em relação ao Direito do Trabalho, a Conferência Internacional do Trabalho de 1944 adotou a Declaração da Filadélfia corno anexo à sua Constituição, passando a ostentar o status de carta de princípios e objetivos da Organização Internacional do Trabalho- OIT, tendo a dignidade humana corno o seu epicentro normativo, naturalmente indicando o caminho a ser trilhado por todas as demais convenções aprovadas e recomendações emitidas nos anos que se seguiram. Dentro desse contexto, o direito internacional do trabalho evoluiu e densificou-se com a aprovação de dezenas de novas convenções, praticamente todas elas ratificadas pelo Brasil e oficialmente internalizadas, ostentando, a partir de então, eficácia jurídica plena na órbita do direito interno brasileiro. Tal traz consequências importantes à sua plena eficácia no plano do nosso direito interno, sendo a primeira delas a imperatividade nas relações de trabalho celebradas no país e, a segunda, o fato de servir de paradigma informativo para o legislador interno e interpretativo para o aplicador, de modo que quando a legislação doméstica- inseridos nesse conceito as normas coletivas, os regulamentos de empresa, as cláusulas contratuais e a legislação em sentido estrito - afrontar as diretrizes das convenções internacionais do trabalho, presente estará o fenômeno jurídico da inconvencionalidade.


A Lei n. 13.467/2017, intitulada de reforma trabalhista, realizou profunda alteração na Consolidação das Leis do Trabalho - CLT, revisando institutos, revogando alguns direitos e introduzindo novas modalidades contratuais, a pretexto de modernização do sistema trabalhista no Brasil. Ocorre que, com a sua vigência, algumas primeiras vozes começaram a apontar a inconstitucionalidades e inconvencionalidades na legislação, tanto no procedimento de aprovação da reforma (repelindo-a integralmente) no aspecto formal, quanto, ultrapassada a primeira questão, em diversos de seus dispositivos, na perspectiva material ou substancial.


Fixadas essas premissas, revela-se proveitoso difundir a teoria geral do controle de convencionalidade das leis, para após exercê-lo relativamente à apontada inconvencionalidade formal do trâmite legislativo da reforma trabalhista, bem como avançar para debater algumas questões substanciais da reforma no que tange à compatibilidade das alterações com os tratados internacionais e em relação às cláusulas impeditivas de retrocesso social, de sorte a demonstrar o mecanismo de aplicação do controle de convencionalidade para o Direito do Trabalho brasileiro, notadamente após as alterações trazidas pela Lei n. 13.467/2017.


1. Obrigação de controle da convencionalidade das leis


Controlar a convencionalidade significa compatibilizar verticalmente as normas do direito interno com os comandos dos tratados internacionais de direitos humanos ratificados. e em vigor no Estado. Trata-se do exercício que há de fazer o juiz de análise da conformidade das normas internas com o que dispõem os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Estado, para o fim de retirar a validade da norma interna menos benéfica.


Para além do controle concentrado perante o STF, há o controle difuso exercível por todos os juízes e tribunais do país, levado a efeito na análise de casos concretos a envolver a aplicação de leis nas questões sub judice. Trata-se do principal tipo de controle de convencionalidade existente, pois é levado a cabo no dia a dia da atuação judicial.


Esse controle de convencionalidade (difuso) é obrigação do Poder Judiciário nacional, decorrente da jurisprudência constante da Corte Interamericana de Direitos Humanos. De fato, desde o julgamento do Caso Almonacid Arellano e outros Vs. Chile, de 26 de setembro de 2006, a Corte Interamericana tem assentado que o Poder Judiciário dos Estados partes à Convenção Americana deve controlar a convencionalidade entre as normas jurídicas internas que aplicam nos casos concretos e os tratados internacionais de direitos humanos em vigor no Estado.


Daí ser o controle interno de convencionalidade o primário e principal relativamente ao controle internacional da convencionalidade das leis, exercido pelas instâncias de monitoramento internacional. Tal, repita-se, é exigência da própria Corte Interamericana de Direitos Humanos na sua jurisprudência constante, iniciada a partir do julgamento do Caso Almonacid Arellano e outros vs. Chile.


Arellano e outros vs. Chile. Inúmeros outros casos julgados pela Corte Interamericana demonstram a veracidade do afirmado -de que a obrigação primária de controle de convencionalidade é do Poder Judiciário local - e evoluem a técnica de controle, inclusive, para os outros órgãos do Estado (poderes legislativo e executivo). Assim estão, v.g., os casos Trabalhadores Demitidos do Congresso Vs. Peru (2006), Cabrera Garcia e Montiel Flores Vs. México (2010) e Gelman Vs. Uruguai (2011). Nesse sentido, cabe a análise da convencionalidade da recente Reforma Trabalhista (Lei n.13.467 /2017) frente a normas importantes de proteção dos direitos humanos ratificadas pelo Brasil.


Nesse exato sentido, lecionando a partir do texto da reforma, Mauricio Godinho Delgado e Gabriela Neves Delgado defendem que o magistrado trabalhista deverá realizar os controles de constitucionalidade e de convencionalidade dos artigos da Lei n. 13.467/2017 em confronto com a Constituição Federal de 1988 e os tratados internacionais de direitos humanos, notadamente as Convenções da OIT, incidentes nas relações de trabalho brasileiras.


É exatamente esta a finalidade deste breve estudo, que visa analisar algumas questões potencialmente (in)convencionais da novel Lei n. 13.467/2017, como se verá a seguir.


2. Controle de convencionalidade formal da reforma trabalhista frente à Convenção n. 144 da Organização Internacional do Trabalho


A Associação Nacional dos Magistrados da Justiça do Trabalho- ANAMATRA, realizou nos dias 9 e 10 de outubro de 2017, em Brasília-DF, a 2' Jornada de Direito Material e Processual do Trabalho, tencionando analisar, interpretar e sugerir soluções acadêmicas para as alterações levadas a efeito na CLT pelâ citada Lei n. 13.467/2017 (Reforma Trabalhista).


Entre os diversos enunciados aprovados, destaca- -se o de n. 1, que conclui ser a reforma trabalhista ilegítima:, nos aspectos formal e material. A investigação das justificativas das propostas que levaram à aprovação do verbete revela que o argumento levantado foi o de que o legislador reformador nacional não teria atendido aos requisitos formais da Convenção n. 144 da OIT, que exige a realização prévia de consultas tripartites aos grupos interessados, antes da realização de qualquer alteração legislativa doméstica em matéria de trabalho, do que decorreria que o texto integral da Lei n. 13.467/2017 teria incidido no vício de inconvencionalidade formal<5 l, pela ausência da consulta tripartite, reclamando, então, a atuação dos magistrados trabalhistas para a sua declaração incidental, quando do exercício do controle difuso, repelindo-a em todos os seus termos.


A Convenção n. 144 da OJT, aprovada pelo Decreto Legislativo n. 6 de 1989 e promulgada pelo Decreto n. 2.518 de 1998, versa a questão das consultas tripartites para promover a aplicação das normas internacionais do trabalho. Especificamente, a norma internacional exige que os grupos de representação dos trabalhadores e dos empregadores sejam previamente consultados pelos governos locais antes das discussões e aprovações dos projetos de textos nas reuniões da OIT, pelo que deveria o representante brasileiro na Organização, antes de sua participação nas reuniões, colher a opinião dos grupos nacionais interessados, para, somente assim, saber se a adesão ou não do Estado brasileiro representava a vontade democrática (real) das coletividades potencialmente atingidas pelos efeitos da normativa internacional.


Também a mesma Convenção exige que sejam igualmente ouvidos em relação às propostas de ajuste da legislação interna, para a execução das novas convenções aprovadas e recomendações emitidas pela agência internacional.


Por fim, a Convenção n. 144 da OIT também determina que sejam inquiridos os grupos de representação quando das oportunidades de reexame das convenções ainda não-ratificadas ou sobre as propostas de denúncia das convenções já ratificadas.


Com a aprovação da norma em referência, a Organização Internacional do Trabalho pretende estabelecer um procedimento democrático de diálogo entre os grupos interessados em matéria do trabalho no que tange à aprovação de novas convenções internacionais, de normas domésticas de mera execução, da ratificação de novas convenções ou da sua denúncia. Contudo, não há exigência para que os grupos de representação de trabalhadores e de empregadores sejam previamente e formalmente ouvidos sobre as propostas internas em matéria de legislação do trabalho, que continuam seguindo o trâmite legislativo ordinário, com as próprias limitações procedimentais e materiais previstas na Constituição Federal de 1988.


A dispensa da etapa de consulta formal aos grupos de representação para a revisão, alteração ou revogação da legislação trabalhista doméstica, não retira desses grupos o direito de que os seus interesses sejam defendidos por meio dos instrumentos políticos próprios, como, v.g., as audiências públicas, a apresentação de notas técnicas aos parlamentares, o convencimento político junto aos legisladores, dentre tantas formas de atuação para influência político- -legislativa. O importante é apenas deixar sublinhado que a Convenção n. 144 da OIT não exige, enquanto etapa formal indispensável, que os grupos de representação sejam necessariamente ouvidos previamente antes de qualquer alteração da legislação trabalhista doméstica.


Dentro desse contexto, muito embora quanto mais debatida, aperfeiçoada e refinada uma nova legislação deva ser, fato é que não há violação direta à Convenção n. 144 da OIT, não possuindo razão as primeiras vozes que levantaram referida tese para repelir, por completo, a Lei n. 13.467/2017, por mais que em seu mérito possa apontar inconveniências políticas das opções abraçadas e inconsistências técnico-jurídicas.


3. Controle de convencionalidade material da reforma trabalhista frente à Constituição da OIT, à Convenção Americana de Direitos Humanos e à Constituição Federal de 1988


A Constituição da OIT consagra, em seu art. 19, § 82, a regra de primazia da norma mais favorável ao trabalhador, ao prever que "[e]m caso algum, a adoção, pela Conferência, de uma convenção ou recomendação, ou a ratificação, por um Estado-Membro, de uma convenção, deverão ser consideradas como afetando qualquer lei, sentença, costumes ou acordos que assegurem aos trabalhadores interessados condições mais favoráveis que as previstas pela convenção ou recomendação". Tal significa que, em nenhuma hipótese, uma nova convenção internacional, ainda que revestida da estrutura formal de tratado internacional de direitos humanos, poderá retroceder no então existente patamar protetivo dos trabalhadores. Em igual raciocínio, mas em sentido inverso, a legislação ordinária doméstica futura não poderá retroceder em relação ao patamar civilizatório já conquistado e garantido pelo ordenamento então vigente, ocasião em que as normas modernas cederiam face às convenções internacionais mais antigas, porém mais protetivas da dignidade humana (pro homine), em controle material de convencionalidade das normas prejudiciais mais recentes.


No mesmo sentido, a Convenção Americana sobre Direitos Humanos, aprovada no Brasil pelo Decreto Legislativo n. 27 de 1992 e promulgada pelo Decreto presidencial n. 678 de 1992, em seus arts. 26 e 29 estabelece que os Estados Partes comprometem-se a zelar internamente pelo desenvolvimento progressivo e plena efetividade dos sociais, bem como que na aplicação da Convenção deve ser considerada a cláusula que melhor fomente a dignidade humana e a progressão dos direitos, na medida em que os direitos do Pacto de San José não excluem os previstos na legislação nacional.


Monique Fernandes Santos Matos, analisando a reforma trabalhista em cotejo com o art. 26 da Convenção Americana de Direitos Humanos, defende que a primeira não passa pelo crivo da segunda, na medida em que a revisão legislativa configura flagrante retrocesso e não desenvolvimento, ainda que progressivo, dos direitos sociais. Para a autora, o resultado dessa equação já gera a inconveniente responsabilidade internacional do Brasil por violação dos direitos sociais, dos pontos de vista jurídico e político, além da possibilidade interna dos magistrados trabalhistas brasileiros realizarem o controle de convencionalidade da reforma, com base no princípio pro homine, para repeli-la, integralmente ou, ao menos, em parte.


O raciocínio exposto por alguns autores, para refutar integralmente o texto da reforma trabalhista, sob o argumento de que retrocedeu em relação ao patamar de direitos sociais vigentes no país, recebeu na dogmática constitucional contemporânea o epíteto de princípio da vedação de retrocesso social. O princípio em referência emergiu a partir das discussões relativas à eficácia negativa dos direitos fundamentais. De fato, os direitos fundamentais possuem uma eficácia positiva, ao exigir uma posição ativa do Estado na implementação da pauta constituinte, bem como uma eficácia negativa, pelo que proíbem intromissões ou revogações estatais indevidas.


Tal significa que quando o constituinte transfere ao legislador a tarefa de mediar e a necessidade de implementação de um direito fundamental, dirigindo a atividade legislativa, cometeria omissão constitucional o legislador que não cumpre essa tarefa, cuja violação é reprimida pelo Judiciário com a ação de inconstitucionalidade por omissão e pelo mandado de injunção. Situação diversa ocorre quando o legislador ordinário regula e efetiva os direitos fundamentais, porém, de acordo com a vontade legislativa posterior, revoga a regulação anterior, retornando ao estado de omissão originário. O princípio da vedação do retrocesso social atua nessa última situação, evitando a revogação das mediações já efetivadas legislativamente. Em ambos os casos, haverá inconstitucionalidade.


São pressupostos para a indução desse princípio que a Constituição garanta a efetividade dos direitos fundamentais e que também adote o compromisso de progressiva ampliação desses direitos, ambos os pressupostos existentes na Constituição Federal de 1988 (arts. 5º, §§ 1º e 22, e 7º, caput) e na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (arts. 26 e 29), tomando possível o seu reconhecimento e aplicação entre nós.


Poderia se argumentar certo inconveniente do princípio da proibição do retrocesso, no sentido de limitar a tarefa legislativa infraconstitucional e obstar as adaptações ideológicas, filosóficas, políticas e econômicas da sociedade, em momento futuro. O perigo de se abraçar a vedação do retrocesso de modo inflexível é que urna parte da legislação ordinária ficaria "petrificada", convertida, por interpretação, em cláusula pétrea, insuscetível de modulação e ganhando status maior que diversos dispositivos do próprio corpo da Constituição Federal.


A se reconhecer o princípio da vedação do retrocesso corno um mecanismo do modelo pós-positivista·-flexível, adaptável e ponderável com outros princípios - ele cumprirá importante função na dogmática dos direitos fundamentais. Preservará urna .pauta constitucional mínima, criando moldura à atuação legislativa, mas possibilitará ao legislador futuro adaptações e revisões das modulações dos direitos fundamentais. E isso se dará reconhecendo que viola o princípio da proibição do retrocesso a revogação de uma legislação implementadora de direitos fundamentais, mas não violará a sua substituição por outra legislação, sua revisão, por urna nova conformação momentânea dos direitos que atenda minimamente a pauta constituinte.


Aprofundando, a proibição do retrocesso social teve origem na dogmática e na experiência da Corte Constitucional portuguesa, para quem a segurança jurídica é um dos principais objetivos do Direito, bem por isso é consagrada nas mais diversas constituições e tratados internacionais. A segurança jurídica engloba as garantias do devido processo legal, da legalidade, do respeito à coisa julgada, ao ato jurídico perfeito e os direitos adquiridos, as restrições em matéria penal, entre tantas outras. Poder-se-ia resumir que a segurança é um princípio fundamental do Estado de Direito, sendo sua nota diferenciadora em relação aos Estados de exceção.


Os autores portugueses divisaram a sua atuação em duas vertentes, quais sejam as ideias da proteção da confiança e também a proibição do retrocesso social. A primeira radica no respeito às situações jurídicas já consolidadas, na confiabilidade, racionalidade e transparência dos atos, quer públicos quer privados, de sorte a dar segurança para todos quanto aos efeitos de seus próprios atos(to). A situação jurídica consolidada não pode ser revista por legislações futuras com efeitos retroativos, corno não pode ser livremente alterada quando já criada nos destinatários uma confiança de que seus efeitos se realizariam. Um exemplo dessa última são os regimes legais de aposentadoria. Aqueles que já atenderam todos os requisitos para a jubilação possuem direito adquirido, mas aqueles que faltam atender apenas alguns anos para o requisito tempo de contribuição não podem ter frustrada a expectativa criada pela própria lei de que se aposentariam em poucos anos, razão pela qual, nessa última hipótese, fixa-se a necessidade de se reconhecer fórmulas intermediárias, mecanismos diferenciados de contagem do tempo e regras de transição, com respeito à confiança gerada naqueles que ainda não possuem a proteção jurídica do direito adquirido, mas que também não se encontram disponíveis livremente às mudanças legislativas prejudiciais.


A segurança jurídica exige a continuidade do Direito, da ordem jurídica posta, mas na sua vertente subjetiva garante a proteção da confiança nessa estabilidade.


Enquanto a proteção da confiança atua na segurança jurídica das situações já consolidadas ou em vias de se consolidar, de outro giro e com efeitos prospectivos, a proibição ou vedação do retrocesso atua nas situações para o futuro, criando limites ao poder público de restringir, mesmo que com efeitos ex nunc, direitos sociais efetivados. Seria o caso de se revogar o regime legal de aposentadoria apenas para aqueles novos trabalhadores a serem admitidos após o início de vigência da nova legislação, deixando sem regulação o disposto no art. 201 da Constituição. A revogação da legislação que regulamenta o regime previdenciário, ainda que respeitasse os direitos adquiridos e a proteção da confiança daqueles já admitidos no regime, encontraria óbice do princípio da vedação do retrocesso social.


Canotilho, a propósito, leciona com precisão:

"O princípio da proibição de retrocesso social pode formular-se assim: o núcleo essencial dos direitos já realizado e efetivado através de medidas legislativas ("lei da segurança social", "lei do subsídio de desemprego", "lei do serviço de saúde") deve considerar-se constitucionalmente garantido sendo inconstitucionais quaisquer medidas estaduais que, sem a criação de outros esquemas alternativos ou compensatórios, se traduzam na prática numa "anulação", "revogação" ou "aniquilação" pura e simples desse núcleo essencial. A liberdade de conformação do legislador e inerente auto-reversibilidade têm como limite o núcleo essencial já realizado.


Como se vê, o princípio da vedação do retrocesso social está intimamente ligado à ideia das restrições aos direitos fundamentais, sendo um de seus balizamentos ("limites dos limites") capazes de criar obstáculos intransponíveis sobre os quais o legislador, e em menor medida também o Executivo e o Judiciário, não consegue saltar.


Na trilha da doutrina lusa de vanguarda, o Tribunal Constitucional português, precursor na aplicação do princípio da proibição do retrocesso social, em dois lapidares julgados o adotou para fundamentar as suas decisões. No primeiro deles (Acórdão n. 39 de 1984) o Tribunal entendeu que uma nova lei que havia revogado parte da Lei do Serviço Nacional de Saúde impunha retrocesso social e, por isso, era inconstitucional, pois afrontava o art. 64 da Constituição que garante o direito fundamental à saúde. Em seu voto, o Conselheiro Vital Moreira pontificou:


"Que o Estado não dê a devida realização às tarefas constitucionais, concretas e determinadas, que lhe estão cometidas, isso só poderá ser objeto de censura constitucional em sede de inconstitucionalidade por omissão. Mas quando desfaz o que já havia sido realizado para cumprir essa tarefa, e com isso atinge uma garantia de um direito fundamental, então a censura constitucional já se coloca no plano da própria inconstitucionalidade por ação.


Em grande medida, os direitos sociais traduzem- -se para o Estado em obrigação de fazer, sobretudo de criar certas instituições públicas (sistema escolar, sistema de segurança social etc.). Enquanto elas não forem criadas, a Constituição só pode fundamentar exigências para que se criem; mas após terem sido criadas_, a Constituição passa a proteger a sua existência, como se já existissem à data da Constituição. As tarefas constitucionais impostas ao Estado em sede de direitos fundamentais no sentido de criar certas instituições ou serviços não o obrigam apenas a criá- -los, obrigam-no também a não aboli-los uma vez criados."


Em julgamento mais recente (Acórdão n. 509 de 2002), o Tribunal também entendeu ser inconstitucional uma nova lei que excluiu os jovens entre 18 e 25 anos da proteção dada pela lei do benefício do rendimento mínimo de inserção, mesmo tendo a legislação fustigada resguardado os direitos adquiridos.


Recepcionando a experiência lusitana entre nós - mormente porque também decorre de opção da nossa Constituição- anota Ingo Wolfgang Sarlet:


"O que importa consignar, nesta quadra, é a circunstância de que a dignidade da pessoa humana não ·exige apenas uma proteção em face de atos de cunho retroativo (isto, é claro, quando estiver em causa uma efetiva ou potencial violação da dignidade em algumas manifestações), mas também não dispensa- pelo menos é esta a tese que estaremos a sustentar - uma proteção contra medidas retrocessivas, mas que não podem ser tidas como propriamente retroativas, já que não alcançam as figuras dos direitos adquiridos, do ato jurídico perfeito e da coisa julgada. Basta lembrar aqui a possibilidade de o legislador, seja por meio de uma emenda constitucional seja por uma reforma no plano legislativo, suprimir determinados conteúdos da Constituição ou revogar normas legais destinadas à regulamentação de dispositivos constitucionais, notadamente em matéria de direitos sociais, ainda que com efeitos meramente prospectivos. Com isso, deparamo-nos com a noção que tem sido "batizada" pela doutrina- entre outros termos utilizados- como proibição (ou vedação) de retrocesso e aproximamo-nos ainda mais do cerne do nosso estudo."


Encontra o princípio da vedação do retrocesso, além da referência ao dogma da segurança jurídica, duas outras manifestações explícitas em nossa Constituição. A primeira delas é a do§ 2º do art. 5º, quando o constituinte originário garante todos os direitos dos diversos incisos, porém diz que "não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados", ou seja, pretende agregar novos direitos fundamentais sem, contudo, admitir o retrocesso daqueles já efetivados (art. 60, § 4º, N). A Constituição funciona como um catálogo mínimo de direitos fundamentais, mas ela própria criou um mecanismo de cláusula de recepção de outros direitos, de tratados internacionais ou da atividade constitucional derivada, a densificar o rol dos direitos fundamentais.


Especialmente no Direito do Trabalho, o constituinte estabeleceu no caput do art. 7" que "[s]ão direitos dos trabalhadores urbanos e rurais, além de outros que visem a melhoria de sua condição social", também garantindo um patamar mínimo aos trabalhadores, porém incentivando o constituinte derivado, bem assim o legislador, a implementar novos direitos, vedando o retrocesso quanto aos que já estão postos na ordem jurídica. Seria inconstitucional uma revogação, sem mecanismos alternativos de compensação, da nova Lei n. 12.506 de 2011 que implementou a proporcionalidade do aviso prévio, atendendo a pauta constituinte do art. 7º, XXI, da Constituição.


Importante ressaltar que o princípio da vedação do retrocesso social impõe limites à atividade legislativa corrosiva dos direitos fundamentais, mas não se aplica quanto às demais questões legislativas. Dito de outro modo, não há falar em vedação do retrocesso social quando, por conveniência política, algumas leis são revogadas ou alteradas, mesmo quando a situação fática tenda a prejudicar o cidadão, desde que não afete diretamente seus direitos fundamentais. Por esse motivo que Ingo Sarlet intitulou a vedação do retrocesso de "eficácia protetiva" dos direitos fundamentais.


Enquanto um princípio, a vedação do retrocesso não é absoluta, em razão disso comporta aplicação por ponderação, na maior medida possível. O que a vedação do retrocesso garante é o núcleo essencial dos direitos fundamentais já efetivados, na sua coincidência com a dignidade da pessoa humana, mas não veda o legislador de conformar os direitos às situações sociopolíticas de determinado momento histórico. Poderá, por exemplo, a lei do aviso prévio proporcional ser modificada, adaptada, aperfeiçoada, na exata medida em que continue respeitando o direito fundamental do art. 7º, XXI, da Constituição.


A doutrina diz que esse núcleo dos direitos fundamentais que a vedação do retrocesso protege é aquele mínimo existencial para a vida digna do cidadão. Contudo, a ideia de mínimo existencial é volátil, pois se altera conforme cada momento político, social e econômico, principalmente quanto a este último em Estados em via de desenvolvimento, como é o caso do Brasil (e aqui está também a noção de "reserva do possível", na medida em que a arrecadação efetiva do Estado, no mais das vezes, não é suficiente para ofertar toda aquela gama completa de direitos fundamentais sociais que a Carta enuncia).


Também, nesse particular, radica a ideia de proporcionalidade, utilizada para determinar qual o mínimo existencial em dada situação concreta, bem assim para saber se o direito fundamental ~exigível compõe a noção de "reserva do possível". E o caso de Estados ricos e desenvolvidos que em momento de crise aguda resolvem, por meio de alterações legislativas, restringir direitos fundamentais já implementados. Não é que, como já referido, a vedação do retrocesso proíba qualquer tipo de restrição, mas a restrição deve ser proporcional e não afetar o núcleo essencial (mínimo existencial).


Ingo Wolfgang Sarlet defende que o reconhecimento de um princípio da proibição de retrocesso não pode resultar numa vedação absoluta de qualquer medida que tenha por objeto a promoção de ajustes, eventualmente até mesmo de alguma redução ou flexibilização em matéria de segurança social, onde realmente estiverem presentes os pressupostos para tanto.


Exemplo da adoção expressa do princípio da proibição de retrocesso social se dá no art. 13 da Constituição da Turquia:


"Direitos e liberdades fundamentais podem ser restringidos pela lei, em conformidade com a letra e o espírito da Constituição, objetivando salvaguardar a integridade indivisível do Estado com seu território e nação, soberania nacional, a República, segurança nacional, ordem pública, paz geral, interesse público, moral e saúde pública, e também por razões específicas dispostas nos artigos da Constituição. As restrições de direitos fundamentais e liberdades não podem entrar em conflito com os requerimentos da ordem democrática da sociedade e não deverão ser impostas para nenhum objetivo que não aqueles para os quais foram prescritas."


Na experiência do Supremo Tribunal Federal há algumas manifestações expressas quanto ao princípio em estudo, a exemplo do julgamento do Mandado de Segurança n. 24.875, de relataria do Ministro Sepúlveda Pertence. Em seu voto, o Ministre Celso de Mello expôs a sua fundamentação, nos seguintes termos:


"Registro, de outro lado, que tenho igualmente presente, no exame desta controvérsia constitucional, o postulado da proibição de retrocesso social, cuja eficácia impede - considerada a sua própria razão de ser - sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão, que não pode ser despojado, por isso mesmo, em matéria de direitos sociais, no plano das liberdades reais, dos níveis positivos de concretização por ele já atingidos, consoante assinala (e adverte) autorizado magistério doutrinário( ... ).


Na realidade, a cláusula que proíbe o retrocesso em matéria social traduz, no processo de sua concretização, verdadeira dimensão negativa pertinente aos direitos sociais de natureza prestacional, impedindo, em consequência, que os níveis de concretização dessas prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser reduzidos ou suprimidos, exceto nas hipóteses- de todo inocorrente na espécie- em que políticas compensatórias venham a ser implementadas pelas instâncias governamentais."


Mais recentemente, desta feita em julgamento do Plenário, com repercussão geral, a Corte Suprema decidiu que o princípio da vedação do retrocesso não interdita o legislador ordinário atual de realizar ajustes e reconfigurações na legislação social, quiçá retirar alguns direitos, desde que não desnature por completo a legislação protetiva. Consta do acordão que:


"Com efeito, dizer que a ação estatal deva caminhar no sentido da ampliação dos direitos fundamentais e de assegurar-lhes a máxima efetividade possível, por certo, não significa afirmar que seja terminantemente vedada qualquer forma de alteração restritiva na legislação infraconstitucional, desde que, é claro, não se desfigure o núcleo essencial do direito tutelado, como seria o caso, se fôssemos adotar a tese de que os valores devidos a título de seguro DPVAT são imodificáveis ou irredutíveis.


Essa postulação de que se conceda ultratividade à lei revogada, na verdade, vai de encontro à própria realidade dos fatos, na medida em que os direitos sociais - como, de resto, qualquer dos direitos fundamentais - demandam ações positivas e têm custos que não podem ser ignorados pelo poder público, tampouco pelos tribunais.


Enfim, por todas essas razões, não parece que o princípio da dignidade humana, tampouco o da vedação do retrocesso tenham efetivamente o conteúdo ou o sentido que o recorrente lhes deseja conferir, ao postular a aplicação de legislação já revogada ao tempo da ocorrência do sinistro."


Logo, conclui-se que não é qualquer alteração legislativa doméstica aprovada para reajustar direitos, ainda que cause prejuízo à determinada categoria de pessoas (inclusive direitos sociais), que será, ipsis tantum, inconstitucional ou inconvencional incidindo na cláusula proibitiva de retrocesso social. É preciso que a alteração normativa esvazie por completo o direito fundamental, atingindo o seu núcleo essencial e retirando-lhe totalmente a efetividade.


Em relação à Lei n. 13.467/2017, que alterou diversos dispositivos da CLT, nada obstante tenha reconfigurado diversos institutos, ao cabo retirando alguns direitos pontuais- como as horas itinerárias (art. 59 da CLT), tempo à disposição (art. 4° da CLT) etc. -, não importou em completo retrocesso social, quer na perspectiva da proibição constitucional ou convencional, senão apenas reconfigurou (ou reajustou) alguns institutos, como, v.g., o da jornada de trabalho, de modo que, ao menos na sua apreciação global, não incidiu a reforma trabalhista na cláusula de vedação do retrocesso e, por isso, não poderá ser rechaçada integralmente em razão desse motivo.


Ressalve-se que a conclusão de não ter a reforma trabalhista, em sua integralidade, incidido em veda~ão de retrocesso, não interdita a possibilidade dos controles difusos de constitucionalidade e convencionalidade quando o magistrado constatar que, em relação a algum direito específico, em vez de reconfiguração dos institutos, houve, na verdade, revogação ou supressão do direito, quando, aí sim, deverá realizar os controles de constitucionalidade e convencionalidade nos casos concretos atinentes aos dispositivos da nova legislação, o que, no entanto, passa ao largo da declaração integral da inconvencionalidade da Lei n. 13.467/2017, corno se demonstrou neste artigo.


4. Conclusões


Os magistrados trabalhistas têm a obrigação de controlar a constitucionalidade e a convencionalidade da nova lei da "reforma trabalhista" (Lei n.13.467 /2017), para verificar se há violação dos direitos fundamentais e dos direitos humanos consagrados nos tratados internacionais, notadamente nas convenções da Organização Internacional do Trabalho.


O procedimento formal de aprovação da reforma trabalhista não violou os termos da Convenção n. 144 da OIT, por isso não poderá ela ser integralmente repelida em controle de convencionalidade difuso formal exercido pelos juízes do trabalho brasileiros.


A cláusula de vedação do retrocesso social, prevista tanto na Constituição de 1988 quanto em diversos tratados internacionais, não impede que o legislador ordinário pátrio realize novos ajustes na legislação social brasileira, reconfigurando institutos e, pontualmente, retirando algum direito, desde que preserve o núcleo essencial do direito fundamental, por isso não pode a reforma trabalhista ser integralmente repelida ao argumento de que, em sua leitura global, retrocedeu em alguns pontos.


Referências bibliográficas


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MOLINA, André Araújo. Teoria dos princípios trabalhistas. São Paulo: Atlas, 2013.


SARLET, lngo Wolfgang. A eficácia dos direitos fundamentais. 6. ed. Porto Alegre: Livraria do Advogado, 2006


André Araújo Molina


Professor Titular da Escola Superior da Magistratura Trabalhista de Mato Grosso (ESMATRA/MT), Professor Visitante da Escola Nacional de Formação e Aperfeiçoamento de Magistrados do Trabalho (ENAMAT), Professor Visitante do Centro de Ensino e Aperfeiçoamento de Assessores e Servidores do Tribunal Superior do Trabalho (CEFAST/TST), Professor Visitante em diversas Escolas Judiciais dos Tribunais Regionais do Trabalho, Doutor em Filosofia do Direito pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Mestre em Direito do Trabalho pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP), Especialista em Direito Processual Civil pela Universidade Castelo Branco (UCB/RJ), Especialista em Direito do Trabalho pela Universidade Castelo Branco (UCB/RJ), Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT) e Juiz do Trabalho Titular na 23ª Região (Mato Grosso). Tem experiência na área do Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: Pós-positivismo, Direitos Fundamentais, Teoria do Direito, Precedentes Judiciais, Responsabilidade Civil e Acidente do Trabalho. Contato: aamolina@bol.com.br

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